quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

As dúvidas do rei Epoqueu




O rei Epoqueu era sempre assaltado por inúmeras dúvidas. Consta que vivia cercado de conselheiros para aplacar suas inquietações, homens que os anos de leitura fizeram sobremaneira doutos e curvados. As questões do rei eram as mais diversas. “Por que as macieiras dão maçãs e não uvas?”, “Onde está o Sol à meia-noite?”, “É possível construir um quadrado com a mesma área de determinado círculo usando para isso apenas compasso e régua?”, "O camponês que atravessa a ponte monta um burro ou um jumento?", "O que faz com que as coisas belas sejam belas?".

Com o tempo ficou claro para todos que ninguém era capaz de responder igualmente bem todas as perguntas do rei. O melhor era tratar o negócio das dúvidas reais como os artesões tratam o negócio das artes práticas. O sapateiro não precisa ser ferreiro, e tampouco o carpinteiro precisa saber tecer meias de lã. Mas cada artífice esforça-se para ser exímio na arte que lhe compete. Era assim nas artes, seria assim no ofício dos conselheiros do rei. A ideia veio já ornada com uma proposta de classificação de questões que, depois de não poucas disputas, foi aceita e lavrada nos anais do conselho real sob o enganosamente portentoso título de "Sobre a questão das questões".

Em breves termos, os conselheiros concordavam que havia quatro categorias de questões que o rei soía fazer: 1. Questões que podem ser respondidas pela observação simples (como a questão da montaria do camponês); 2. Questões cuja resposta requer um aumento dos poderes de observação do homem (como a questão da macieira e a do Sol); 3. Questões que podem ser respondidas com métodos matemáticos (como a questão do quadrado); 4. Questões que não podem ser respondidas satisfatoriamente por nenhum tipo de observação e por nenhum método matemático (como a questão da beleza). Por ocasião da dieta dos conselheiros, sugeriu-se timidamente que o quarto tipo de questão talvez devesse ser descrito apenas como: "Questões que não podem ser respondidas". Mas essa sugestão não passou de um breve rumor, uma vez que - a gente sábia lembrou - o rei tinha as dúvidas, e exigia as respostas. Dessa forma, definiram-se as questões. E para que melhor fossem respondidas, dividiram os conselheiros por quatro colégios, cada um especializado em uma das quatro categorias de questões: o colégio dos observadores, o colégio dos metaobservadores, o colégio dos calculistas e o colégio dos teorizadores puros.

Epoqueu fazia suas indagações e os conselheiros porfiavam em dar a melhor resposta. Não era fácil todavia. Em primeiro lugar, a resposta tinha que ser clara e expedita, pois o rei não tolerava algaravia. Era célebre o caso do conselheiro que tentou explicar-lhe uma vez por que as estrelas piscam fazendo menção às transformações dos bólidos gélidos, monolíticos, obnóxios e onfalóides, mostrando ao final que as estrelas não existem, que existe apenas uma interminável sucessão de aparecimentos rápidos de bólidos e não-bólidos, os quais são a mesma coisa sub specie aeternitatis. Horrorizado com essa explicação, Epoqueu transferiu o conselheiro para o açougue real, onde foi ajudar no enchimento das linguiças.

Em segundo lugar, a resposta devia sempre estar apoiada em boas razões. Seria tolice dar uma resposta sem justificá-la, e obviamente nem tudo contava como justificativa válida. Por exemplo, não era considerado válido justificar uma opinião simplesmente por apontar que todo o vulgo a tem, ou que eminente sábio a tinha. O rei era muito sagaz e desconfiado e nunca abraçava uma crença apenas baseado no número dos que a têm ou na estatura dos que a tinham. Esperava-se que os conselheiros apoiassem suas teorias em outra variedade de razões. Aos observadores, pedia-se observações; aos metaobservadores, pedia-se teorias e metaobservações; aos calculistas, pedia-se cálculos; e aos teorizadores puros pedia-se argumentos.

Em terceiro lugar, o proponente da resposta devia antever objeções. Não poderia ser de outra forma, desde que existia uma franca disputa entre os conselheiros para dar a explicação mais convincente, e, nesse afã, punham redobrado zelo em desacreditar as respostas de seus pares. Todas as disputas eram travadas diante do rei, para que, ao final, ele pudesse fazer seu juízo e decidir qual resposta era mais plausível.

Figurativamente, o conselho do rei Epoqueu era uma máquina de respostas. Suas alavancas eram mentes, seus pesos e contrapesos eram ideias, suas engrenagens eram inferências, seu combustível eram dúvidas. Uma vez o rei indagou desse formidável engenho pensante se todas, e apenas, as respostas de mecanismos que operassem dessa mesma forma seriam racionais. A resposta, apoiada em todas as ponderações e minúcias requeridas, foi unanimemente 'sim'. Epoqueu imaginou então por um momento um outro rei, monarca de um reino ignoto, assistido por um conselho com procedimentos e regras totalmente diferentes das de seu próprio. Ele pensou que, se tal rei fizesse ao seu conselho a mesma pergunta sobre a pureza e completude da racionalidade de suas respostas, obteria dele a mesma resposta 'sim'. Logo em seu coração surgiu o desejo de saber se poderia ter alguma garantia de que a resposta do conselho real era mais segura do que a do imaginário. Não quis, porém, formular essa questão para sua máquina de respostas. Ele refletiu e pensou que até a razão tem limites. 

Epoqueu foi pródigo em dúvidas até o fim dos seus dias.

Um comentário:

  1. Gostei muito do texto. Literariamente tem uma sutileza muito boa. A personagem central é ótima.

    Fiquei pensando mais na questão que o Rei Epoqueu decidiu deixar de lado.

    Pensei: a decisão dele não se baseia na impossibilidade de uma razão universal que estruture todas as outras formas de razões que surgem culturalmente em cada reino? Não que umas sejam racionais e outras não, mas numa forma de comensurá-las através de uma base estruturante a todas. Uma base que seria condição de possibilidade de qualquer racionalidade.

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